MARANHÃO: BOAS PRÁTICAS DA AGRICULTURA FAMILIAR QUILOMBOLA

MARANHÃO: BOAS PRÁTICAS DA AGRICULTURA FAMILIAR QUILOMBOLA
Foto: Vanessa Eyng

As comunidades quilombolas possuem em seus modos de ser, fazer e viver, práticas consideradas tradicionais. A tradição aqui não reclama uma associação à temporalidade, ao ultrapassado, ao arcaico ou entrave ao desenvolvimento capitalista, ao contrário, o tradicional envolve o respeito à diversidade sociocultural desses grupos, que está intimamente ligada ao controle territorial e as habilidades destes no uso consciente e na preservação dos recursos naturais. Logo, as práticas tradicionais das comunidades quilombolas estão em conformidade com a formação de territorialidades específicas, com os modos de constituição de unidades familiares, com as formas de mobilizações políticas e com as reivindicações de direitos que vão sendo (trans)formados a partir das dinâmicas locais.

Os quilombolas lutam pela permanência nos seus territórios, fazendo suas intervenções políticas em busca da concretização dos seus direitos garantidos constitucionalmente. A titulação definitiva dos territórios coletivos é a principal demanda do Movimento Quilombola, que tem sua organicidade política nas esferas local, municipal, estadual, nacional e internacional. Essas organizações são apoiadas por organizações sociais, governamentais e não governamentais, que lutam por direitos territoriais coletivos e buscam instrumentos que auxiliem e ampliem o desenvolvimento da Agricultura Familiar Quilombola.

Dentre as práticas das comunidades quilombolas, a Agricultura Familiar, com status de atividade sociocultural e socioambiental, é central na definição das formas de apropriação do território e do uso dos recursos naturais, pois, se constitui enquanto modo de fazer coletivo imprescindível para a sobrevivência das comunidades. A prática da Agricultura Familiar e seus prováveis resultados, inclusive ambientais, está relacionada diretamente com a segurança territorial e à segurança alimentar, e transcende valores econômicos, pois a consciência no uso dos recursos naturais e os modos de partilha de frutos/sementes e troca de força de trabalho, superam valores comerciais. A prática da Agricultura Familiar nas comunidades quilombolas assegura um conjunto de interdependência e relações sociais entre e para além dos núcleos familiares e comunidades, indispensáveis para o reconhecimento da existência coletiva. 

A feitura de roças é uma das atividades da Agricultura Familiar mais praticadas pelas comunidades quilombolas no Maranhão. Roça é uma palavra que temos conhecimento desde os nossos antepassados, são conhecimentos transmitidos de pais e mães para filhos e filhas. Para nós, a roça carrega vários significados, dentre eles: força do trabalho, alimentação e geração de renda. A relação dos quilombolas com a roça é a sustentação da nossa segurança de vida em todos os tempos. A base de produção dos alimentos dos quilombolas é a roça, onde a força do trabalho é coletiva, por meio de troca de dias ou ganhar dias, cada dia pode ter um grupo de cinco a dez pessoas trabalhando em forma de mutirão. A produção é do dono da roça e há uma rotatividade dos trabalhos. 

Fazer roça tem o seu passo a passo, que são estes: marcar o mato, fazer a picada, roçar, queimar o roçado, limpar e arrumar as lenhas ou fazer coivara, escolha das sementes, capinar e abater. Todas essas atividades, além de fortalecer a organização comunitária e gestão do território, são pilares da cadeia produtiva das comunidades quilombolas. Portanto, a roça é a vida, é respeitar a natureza e conviver coletivamente para o desenvolvimento socioeconômico e cultural do Quilombo.

A chamada roça de toco, com a realização do desmatamento e posterior queimada, cercamento e limpeza do terreno para o plantio, ainda é predominante. No entanto, essa prática é cercada de cuidados, com vistas a mitigar danos ambientais. Importante mencionar que a prática de queimadas para a feitura de roças, promovida nas comunidades, tem baixo impacto ambiental, se considerarmos as grandes extensões desmatadas e queimadas para atender o agronegócio e o setor agropecuário. Não obstante, mesmo com o baixo impacto das queimadas, os estudos sobre roça sem fogo têm avançado e vêm sendo experimentados no Maranhão, assim como a percepção dos grupos sobre o esgotamento do solo, mudanças climáticas e conscientização sobre os impactos ambientais.

Na feitura de roças, podemos elencar algumas práticas que podem apoiar nas ações para reduzir os efeitos das mudanças climáticas, observando que o calendário para fazer roças é influenciado diretamente por essas mudanças, haja vista que obedece e depende do período e frequência das chuvas.

Cuidado na escolha do local para plantio da roça, considerando o período de descanso do solo:

  •  Os locais escolhidos consideram a não derrubada de árvores centenárias, árvores frutíferas ou em vias de extinção.
  •  Durante as queimadas, são tomados cuidados para que o fogo não se propague para além da área demarcada para a roça, como fazer aceiros.
  •   As roças não devem ser feitas em locais que comprometam as fontes de águas, o percurso de rios e riachos.
  •  As roças respeitam os locais consagrados aos cultos afro-religiosos das comunidades, em regra, locais com árvores frondosas e fontes de água.
  •  Para fazer as roças, as comunidades não sacrificam áreas de juçarais, babaçuais e buritizais, fontes de alimentos, preservação de recursos ambientais.
  •  Em regra, as comunidades quilombolas, em suas práticas da Agricultura Familiar, não utilizam produtos agrotóxicos em seus modos de produção e conservação de produtos e sementes.

Demais práticas de agricultura como as hortas, plantações de quintais, canteiros de plantação de ervas e plantas medicinais, em regra não exigem desmatamentos, nem queimadas ou uso de agrotóxicos que contaminam o solo e as fontes de água. Em regra, essas plantações são alimentadas pela reutilização de água de reservatórios.

Por isso, para as comunidades quilombolas, é muito importante deter o controle territorial e ter a segurança da propriedade coletiva, demarcar de forma decisiva as intervenções para reduzir os impactos ambientais. Em comunidades com territórios em disputa, onde os conflitos são mais acirrados, uma das formas de violência, por parte dos fazendeiros ou supostos proprietários, é a destruição dos recursos naturais ou mesmo o impedimento às pessoas do uso de recursos essenciais como água potável, terra para trabalhar e construção de moradias dignas. A comunidade que tem a propriedade da terra sob seu domínio possui autonomia na gestão do território, tem mais condições de preservar e fazer o uso comum e consciente dos recursos naturais, essenciais para a mitigação dos efeitos climáticos.

No Maranhão, a luta das mulheres em defesa dos babaçuais, a criação e aprovação das Leis do Babaçu Livre, deve ser considerada uma ação prática sem precedentes para apoiar a mitigação das mudanças climáticas. A luta contra a apropriação privada dos recursos naturais, a defesa das palmeiras de babaçu, sem cercamento, sem derrubadas, tem garantido a sobrevivência e formas de resistência das mulheres quilombolas, trabalhadoras rurais, extrativistas e quebradeiras de coco babaçu.

Cabe ressaltar que em relação às comunidades quilombolas e as comunidades rurais, as políticas públicas operam favorecendo as classificações tidas como oficiais em detrimento das identidades específicas. Em se tratando do cenário da Agricultura Familiar, esta classificação apresenta para os quilombolas muitas reflexões, pois os gestores públicos classificam e publicam os programas da chamada Agricultura Familiar Quilombola, mas nas entrelinhas inexiste um plano específico de investimento para esses grupos, nós somos incluídos em programas com propostas genéricas. O planejamento não é compartilhado, não tem recursos financeiros e investimentos são insuficientes, os programas são paliativos, a assistência técnica esporádica. Existe o preconceito de que as práticas tradicionais não combinam com a modernidade, devem permanecer manuais, com reminiscências escravagistas. A reprodução de estereótipos racistas faz com que os programas e projetos não proponham a mecanização e grandes investimentos em territórios quilombolas, pois se negam a tratar práticas tradicionais associadas às novas tecnologias.

Por fim, as comunidades tradicionais têm sido apontadas como grandes responsáveis por práticas de preservação ambiental que podem servir para apoiar a mitigação das mudanças climáticas. Mas, para isso, a Agricultura Familiar Quilombola e seus programas de incentivo devem ser pensados e planejados no chão das comunidades, acompanhado da incidência política dos quilombolas e seus modos de fazer particulares. O mundo precisa ser entendido e trabalhado em fase da multiplicidade de vínculos e articulações entre diferentes atores sociais, agentes econômicos e setores que operam nos diversos territórios, pois as nossas práticas tradicionais locais podem oferecer alternativas com repercussão em escala global.

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Ivo Fonseca Silva e Célia Cristina da Silva Pinto
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Ivo Fonseca Silva é quilombola da comunidade Frechal, Mirinzal (MA).  Sua trajetória, enquanto liderança quilombola, está coadunada às lutas em prol dos Direitos Humanos, particularmente dos direitos das comunidades quilombolas. Foi sócio fundador e Coordenador da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (ACONERUQ), Coordenador do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN/MA). Atualmente é coordenador da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Célia Cristina da Silva Pinto é quilombola do Quilombo Acre – Cururupu (MA). Tecnóloga em Gestão Ambiental e Extensionista em Planejamento do Desenvolvimento Local Sustentável “Construção de uma Estratégia de Desenvolvimento Sustentável para as Comunidades de Afro – Descendentes” e Coordenadora Executiva CONAQ.

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