BAHIA: BOAS PRÁTICAS DA AGRICULTURA FAMILIAR QUILOMBOLA
Foto: José Ramos
Entende-se por agricultura, a prática de cultivar o solo e dele extrair o alimento. Daqui, podemos problematizar uma série de questões, pensando a função da terra para quem dela cultiva e tira seu sustento. Por outro lado, podemos entender que, com o avanço tecnológico, a terra assumiu outras funções, que não necessariamente são de tirar o alimento, mas de servir de base para funções exploratórias por parte de grandes empresas e latifúndios. O solo por sua vez cumpre sua função produtiva, quando este é trabalhado, do contrário, é um solo não produtivo do ponto de vista de sua função agricultável — mas, do ponto de vista agronômico, ele continua com suas propriedades físico-químicas produtivas.
Essa é uma questão muito presente no Brasil, no que se refere aos grandes latifúndios, que tem base na apropriação indevida, com o processo de grilagem de terras, e que acabam tomando as terras dos nossos agricultores, causando danos ao solo, pelo uso indevido de agrotóxico, além de retirar das mãos de quem vive e trabalha, a terra, que é a base alimentar.
Mas voltando ao conceito, a agricultura é classificada por uma ampla conceituação a partir do seu modo de uso. Atemo-nos aqui a descrever sobre a agricultura de modo familiar e quilombola, entendida como aquela que se dá através do envolvimento de uma prática familiar e não patronal no cultivo e manejo da prática agricultável. No que se refere à “Familiar e Quilombola”, entende-se que é uma prática onde a agricultura familiar se dá no seio de um quilombo, diferenciando, assim, por suas práticas, forjadas na ancestralidade de cada povo, cada quilombo e de seu modo de cultivar a terra, conservando o meio ambiente. Entendemos que, pela própria relação ancestral, são nos territórios quilombolas que estão ainda as maiores áreas de terras conservadas, havendo ali um controle para extração e exploração de seus recursos de forma sustentável.
A prática da agricultura dar-se-á nos primórdios da humanidade, quando ainda nômades viviam de região para região, e ali permaneciam até que a comida disposta em matas, rios, florestas existia, já que até então eles não sabiam cultivar. Com o passar do tempo, de acordo com estudiosos, estes homens e mulheres passaram a observar que as sementes que caiam geravam outra plantinha. Ressaltamos que esta observação para o processo do nascer de uma nova planta se deu pelas mulheres, já que os homens tinham que sair para buscar frutas, verduras, animais, pescar e trazer água. E como elas que ficavam em casa, manuseando estes alimentos, observaram este movimento da natureza. Daí para cá, inicia-se o processo das primeiras tecnologias sociais de manejo do solo, a fim de cultivar os primeiros pedaços de terra, através do uso de pedaços de madeira e ossos de animais. Em seguida, é que vão surgir as ferramentas mais modernas, como a enxada, a foice, o facão e a tração animal. Assim, cultivavam pequenos roçados com uma diversidade de plantas com o único objetivo de alimentar a família. Controlavam-se o uso do fogo e mantinha assim uma biodiversidade em harmonia com a natureza.
Isto foi alterado pela chegada da Revolução Verde, que nada mais foi que a reutilização de insumos químicos sobrados da Segunda Guerra Mundial. Os EUA passaram a oferecer para os países pobres e em desenvolvimento, como o Brasil, os pacotes agroquímicos, sob o argumento de fornecer alimento para a população, tendo em vista que com o fim da guerra muitas áreas foram destruídas e muita gente passou a sentir fome. Para tanto, havia ali um interesse em comercializar estes produtos, disseminando, assim, uma cultura capitalista de mais consumo e comercialização com único objetivo de alimentar, tendo em vista que com o fim da guerra muitas áreas foram destruídas e muita gente passou a sentir fome.
Assim, a agricultura sai de uma função meramente de subsistência para atender um apelo mundial de produção em grande escala para alimentar a nação. O território de Irecê na Bahia, por exemplo, passa por esta transição de forma forçosa, com o aval dos governos e inclusive com incentivo financeiro, através de projetos financiados por agências bancárias públicas, a exemplo do Banco do Nordeste. Órgãos de assistência técnica passam a ser criados com a intenção de manter a política agrícola com o viés da transição agroecológica para a monocultura, o que deu ao território de Irecê no início da década de 60 e 70 o título de Capital do Feijão.
Este é apenas um exemplo para ilustrar como se deu este processo, que fez mudar um modo de produção baseado na biodiversidade, na agricultura familiar de subsistência, para um grande pólo produtivo de monoculturas, que levou consigo as matas virgens, as fontes de água doce e o jeito de trabalhar das famílias, já que com a chegada do maquinário agrícola, vai-se esvaindo também os mutirões – uma das práticas ainda existentes em muitos territórios baianos entre homens e mulheres, adjuntos e todas as práticas ancestrais e griôs dos povos tradicionais quilombolas desta e das demais regiões do estado da Bahia.
Para além disto, as tecnologias agrícolas provocaram a desocupação de uma mão de obra já existente, sendo trocada por máquinas, daí nota-se as mudanças climáticas com a escassez de chuvas nas regiões de clima semiárido e do cerrado baiano. Além disto, a cultura da perfuração de poços artesianos comprometeu o lençol freático e passamos a ter problemas com o abastecimento humano de água tanto pela escassez como pelo envenenamento das nascentes.
Depois de mais de meio século deste cenário, a luta hoje é pelo resgate destas antigas e boas práticas da agricultura familiar quilombola. Para isto, as comunidades têm buscado se organizar em associações, cooperativas, sindicatos e movimentos, e tem buscado junto aos governos acessar políticas públicas que trazem de volta a preocupação com os biomas, com os mananciais e com o uso correto do solo. Podemos citar como exemplo, os projetos desenvolvidos por ONGs, associações, secretarias de agricultura, governo do estado, que têm priorizado ações voltadas para o cultivo de sementes crioulas com a construção de bancos de sementes, projetos de hortas orgânicas coletivas, construção de tecnologias sociais, como cisternas de produção para o cultivo de quintais produtivos, beneficiamento dos produtos da agricultura familiar, como a mandioca, os frutos silvestres, dentre outros.
Entendemos que o estado da Bahia é diverso e cabe dentro dele os vários climas e biomas que aqui coexistem, a exemplo do bioma Caatinga e Cerrado, situados nas regiões Nordeste, Centro Oeste, Norte e Oeste da Bahia, com o seu clima semiárido, além dos biomas úmidos e subsumidos das regiões do Sul e Recôncavo da Bahia. Então, surge a divisão sócio-política deste estado em territórios de identidade, tendo a agricultura como um demarcador desta dinâmica e a cultura de cada povo e cada região. Nesse contexto, institui também ações e políticas para a agricultura familiar quilombola, buscando dialogar com as características de cada lugar. E nesta biodinâmica, nós acreditamos que não é possível mitigar a seca ou as enchentes, ou as mudanças climáticas, mas conviver com cada clima, buscando dialogar com os governos sobre que práticas e projetos são viáveis para cada região.
Temos percebido que o maior entrave atualmente tem sido a organização comunitária, na qual as pessoas ainda têm dificuldade de se organizar e mesmo onde existem associações, sendo que maioria delas enfrentam dificuldades com a gestão e a regularização documental, o que dificulta o acesso a projetos via editais. Nesse sentido, buscar organizar o movimento quilombola é uma luta diária, para garantir que nossas associações e comunidades acessem às políticas públicas, bem como o acesso dos territórios quilombolas ao processo de regularização fundiária, com a titulação dos mesmos, o que potencializa o processo da produção local e contribui com a mitigação da migração de nossos agricultores para os grandes centros ou para o agro e hidronegócio.
Mesmo com tais dificuldades de organização, os agricultores e agricultoras familiares quilombolas tem seu jeito próprio de se organizar a partir de cada jeito, cada modo de vida, mas respaldados na sua ancestralidade, que acaba ligando com outro quilombo. Assim, o modo de produção, no caso da Bahia, é respaldado por esta diversidade, tanto do ponto de vista de território, como de clima, biodiversidade e condições locais. Deparamos com realidades diversas, do ponto de vista da cultura de consumo e produção. Na região semiárida, por exemplo, há agricultores cultivando e produzindo tanto para o consumo, como para a produção no sistema sequeiro e irrigado. Há experiências locais de beneficiamento de frutas da Caatinga, como o umbu, a acerola, a manga, o maracujá, os quais são processados em cozinhas comunitárias ou nas próprias casas e transformados em geleias, sucos, polpas, além do processamento de outras culturas, como a mandioca.
Essas iniciativas têm contribuído para a melhoria da renda familiar, principalmente no que diz respeito à autonomia das mulheres, por estarem à frente de empreendimentos e iniciativas, além de agregar valor à produção. A produção de modo agroecológico e de procedência orgânica tem sido outra alternativa crescente na Bahia. A partir do processo de certificação participativa, os agricultores familiares orgânicos têm buscado sua certificação e tem disputado os mercados institucionais e convencionais. A comercialização para todos estes eixos mantém-se como um grande desafio, mas os programas e políticas de comercialização, com base nos mercados institucionais, tem se mostrado um forte catalisador na melhoria deste cenário, além de feiras quilombolas, exposições, intercâmbios, dentre outras alternativas de divulgação dos produtos da agricultura familiar quilombola. Tudo isto desponta como alternativas para repensar a proposição e replicação de políticas públicas voltadas para cada contexto, sem perder o foco nas questões de identidade, ancestralidade e preservação de nossas áreas de preservação ambiental.
No caso da Bahia, temos um governo que tem um olhar para agricultura familiar, por outro lado esbarra na falta de sensibilização para a regularização das terras devolutas, onde somam mais de 80% e onde habitam muitos territórios quilombolas, além de lidarmos com o processo burocrático dos serviços cartoriais de registro.
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Uilson Viana de Souza e José Ramos de Freitas
Todos os postsUilson, quilombola, militante do movimento quilombola, vice coordenador da CONAQ, técnico agrícola, jornalista, especialista em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça. Uilson é também especialista em Educação Contextualizada para Convivência com o Semiárido, mestre em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos, doutorando em Estudos Étnicos e Africanos na UFBA. José é quilombola do Quilombo Porto do Campo (BA). Desde 2001 milita pelo direito e fortalecimento das comunidades quilombolas em prol da efetivação das políticas públicas. Quer ver as comunidades organizadas e fortalecida. Em sua jornada a militância está em primeira instância, militando sempre com o “pé no chão”, com responsabilidade, respeitando todas as comunidades.